(Carta escrita pela psicanalista Maria Rita Kehl, em homenagem a Augusto Boal, que completaria 80 anos neste mês).
Lições de Boal
É muito bom quando uma amizade, além de nos fazer companhia, nos ajuda a entender o mundo. Acho que com o Augusto, todas as amizades eram assim. Duvido que alguém tenha passado por ele sem aprender muito. Mas, como todos sabem, ele não era nem um pouco professoral. Simplesmente o modo de ele estar no mundo, com o outro, era este: pensante, pensante, pensante. Pensava com entusiasmo, descobria e transmitia com entusiasmo. Por isso, ensinava.
Conheci a Cecília [esposa de Boal] em 1998, mas só em 2003 o Augusto quebrou o isolamento produtivo em que ele ficava, na salinha que eu chamava de seu “aquário”, para conversar comigo. Isto aconteceu depois que a Cecília conseguiu convencê-lo a ir ouvir uma conferência minha sobre televisão e Sociedade do espetáculo (Guy Debord). Eu estava toda orgulhosa de ter decifrado um pouco o livro do Debord, que parece fácil, mas é encrencadíssimo. Augusto ouviu até o fim, fez boas perguntas e observações no debate, sem nenhuma arrogância por ser o homem mais importante daquela sala. A partir desse dia, fui considerada uma interlocutora. Ele saía do aquário para conversar comigo. Fiquei vaidosa, claro. Mas demorei a perceber que o interesse dele pela conversa tinha muito mais de generosidade do que parecia. Ele não tinha nada a aprender comigo, embora tenha percebido em mim, rapidamente, uma aliada. Mas percebeu também que poderia me ajudar a ampliar meu horizonte de psicanalista de esquerda.
Aquilo que aprendi com ele, ainda não terminei de processar – porque Augusto não era acadêmico, nunca me deu textos prá ler nem citou autores difíceis. Ele sentava por perto, quando eu tomava café em sua casa, e puxava um assunto. Vou direto ao ponto: com ele entendi que a subjetividade é um palco e nós, que nos achamos tão espontâneos e autênticos, estamos sempre representando. A idéia tão avançada da sociedade do espetáculo não está errada, mas Guy Debord acrescentou apenas um parágrafo na longa história da teatralidade humana. O que o Boal me disse, para começo de conversa, foi que as sociedades de corte também dependiam do espetáculo para assegurar a continuidade do poder. As festas da coroação, os casamentos reais, tudo o que a corte fazia era aberto e exibido para a plebe, de modo que as pessoas se sentissem participantes do espetáculo, sem perceber que não eram participantes do poder. A Roma do “pão e circo” também usava o espetáculo para sustentar o império. A idéia de sociedade do espetáculo, portanto, não é contemporânea – o que mudou, com a televisão, a publicidade etc., foram os meios de globalização do espetáculo, que com isso também se tornou mais onipresente e mais permanente na vida das pessoas.
Depois aprendi que essa conversa de “somos todos atores” não é demagogia para desinibir os jovens aspirantes a entrar no teatro. Somos todos atores porque nosso ser, desde o mais íntimo, é inseparável daquilo que mostramos para o Outro. Somos seres públicos, mesmo nos casos em que a família seja a única platéia de uma vida toda – o que é muito pouco, porque a partir da infância, o sujeito cresce e se realiza ao se projetar em círculos maiores do que este primordial, familiar. E tem mais: aquilo que encenamos para o outro, e o modo como o outro nos interpreta, ajuda a formar nossa subjetividade.
Assim, há sociedades que exigem de nós personagens poderosos, corajosos, heróicos, justos – como as ordens de cavalaria do final da Idade Média – e contribuem para que, representando este papel, nos tornemos mais corajosos, talvez heróicos, relativamente justos. Há sociedades, como a atual, que incentivam personagens exibidos, consumistas, egoístas, voltados para o prazer individual – e conseguem formar pessoas assim, porque é assim que respondemos ao papel que esperam que representemos. Claro que a subjetividade comporta outras dimensões, mas com Boal entendi o enorme peso desta dimensão pública, teatral, que faz parte do mais profundo no nosso ser.
Entendi também que o papel que escolhemos representar, nos modifica. Este é o “milagre” operado pelo Teatro do Oprimido. Quando escolhemos o papel de agentes transformadores da realidade em que vivemos, este papel há de nos transformar para que sejamos capazes de contribuir com a transformação social. Se escolhermos o papel de vítimas passivas, ficaremos passivos e vitimados, a fazer um teatrinho de lamúrias e denúncias. Se fizermos do teatro um instrumento político ele há de nos transformar em agentes transformadores no espaço público. Se fizermos dele um instrumento terapêutico, ele pode curar alguns de nossos sintomas, mas também pode nos transformar em sujeitos centrados na nossa própria psicologia, que só se compreendem no mundo a partir das pequenas patologias da vida privada.
Que personagens desejamos ser, que enredo escolhemos representar? Augusto deixou esta pergunta a todos. Sabia que não podia respondê-la por nós, pois ninguém escolhe pelo outro. Os integrantes do CTO terão que continuar escolhendo sempre, a cada novo conflito, a cada nova crise, o papel que desejam representar e os sujeitos em que desejam se transformar.
E a cada nova escolha, vale a pena recordar aquelas que foram feitas, com muita coerência e sinceridade, pelo nosso querido Boal. Pois ele era um personagem ambulante de si mesmo, tão completamente, que nunca falsificava seu próprio papel. Ele tornou-se o homem transformador e inspirador de transformações alheias – um papel que, desde bem jovem, escolheu representar.
Longa vida à memória de Augusto Boal.
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